quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Josmar Josino traz a vida das mulheres brasileiras destruídas pelo cárcere

A comida estava boa, o ambiente também. Ao meu redor, vi pessoas animadas conversando com palavras e com o corpo. Saí tarde, quase meia-noite, para um evento que começou às dezenove. Mas a adrenalina ainda estava alta. Desde o momento que cheguei fiquei ansiosa para cumprir a tarefa a qual fora incumbida: entrevistar Fernando de Castro Lopes, chargista do Correio Brasiliense, ganhador do prêmio na categoria Artes.

Mas, logo na entrada vi que um dos meus colegas já tinha entrevistado o Ricardo Kotscho. Fiquei dividida: “Pego esse cara ou fico de olho no chargista”? Resolvi cumprir com meu compromisso assumido anteriormente. Entrei no auditório e a professora Regina pediu para que fizesse a cabeça do programa de TV, ou seja, tive que parar com tudo e decorar o texto.
Confusão...

A agitação começou a ferver dentro de mim: decorar o texto, acompanhar a premiação ficando de olho “na minha isca”, ver todos aqueles profissionais que vemos, lemos e ouvimos há anos: o Zuenir, o Zé Hamilton, o Caco, o Kotscho... passou pela minha cabeça: “meu, esses caras REALMENTE existem...”. Em carne e osso. Estávamos no mesmo ambiente e, a distância criada inconscientemente que os eleva à categoria de mito, se esvanecia...

Antes que a homenagem ao cinco grandes jornalistas que tanto contribuíram para os direitos humanos começasse, meio mundo já estava do lado de fora, comendo, conversando, entrevistando... e eu, procurando o chargista barbado, magro e de camisa branca. Se ele vier a ler este texto, saiba que o procurei por toda parte, tirei fotos, mas realmente não o encontrei. A comida começou a ser servida, mas quem disse que eu conseguia desfrutar? Ah, ainda tinha que gravar a “cabeça”...

Foi então que decidi pegar quem aparecesse na minha frente. Senão, em meio à minha confusão, voltaria pra casa sem nada. Meus colegas apontaram-me o ganhador do livro-reportagem Josmar Jozino. Ele estava só, olhar triste, indo embora...


Ataque!

Interrompi sua partida. Já fui logo sincera: “olha, eu tinha que entrevistar uma pessoa que sumiu... será que eu posso te entrevistar”?

Nada assustado com minha sinceridade, ele se colocou a meu dispor. O legal é que esses jornalistas estão acostumados com estudantes e, especialmente esse, foi muito compreensível. Descobri que o olhar triste é só aparência. Ele, na verdade, estava muito feliz pelo reconhecimento de seu trabalho. E eu me surpreendi: alguém tão humilde, ombros caídos, foi ao evento de calças jeans e camiseta... nada conhecido... revelou-se um super-jornalista: mais de vinte anos de carreira, passou por, praticamente, todas as rádios de São Paulo, é o seu segundo livro (o anterior também recebeu o prêmio)
e terceiro prêmio Vladimir Herzog. Atualmente é repórter do JT.

Apaixonei-me pelo seu trabalho. Seu livro Casadas com o Crime narra histórias de mulheres encarceradas fisica ou emocionalmente, por estarem envolvidas com presidiários. Comentei que também cogitava fazer meu TCC sobre a vida das famílias encarceradas, pois convivia com uma, e contei sobre um fato trágico ocorrido com um amigo ex-presidiário...

Josmar Josino se dispôs a me ajudar e me passou seu telefone. Agradeci ao entrevistado e sua família que, pacientemente, me esperavam. Descobri que as aparências não só enganam, mas ludibriam mesmo. Eu, inconscientemente, pensava que jornalista tinha um “tipo”: olhar atento, comunicativo, corpo ereto... o Josmar não tinha nada disso. Mas fez um super trabalho e já estou de olho no seu livro (que ainda não chegou às livrarias). Quem disse que jornalista tem que ser clone de Caco Barcelos?

Gostaria que o tempo e lugar permitissem, pois certamente haveria mais assunto. Mas, transcrevo abaixo, um trecho de nossa conversa:


O que representa pra você ganhar esse prêmio?
É muito gratificante. Na minha opinião, é o prêmio mais importante do país, e o considero até mais importante que o Prêmio Esso, sem desmerecê-lo, pois também é um grande prêmio. Mas esse é da área de Direitos Humanos que é a área que eu faço cobertura há praticamente duas décadas. É o 3º prêmio que eu ganho, então estou muito feliz. A primeira vez que eu ganhei foi por uma reportagem e a 2ª vez foi por outro livro-reportagem.

Sobre o que trata o seu livro?
No livro Casadas com o Crime eu retrato a situação da mulher presa e da mulher que tem parentes presos, seja marido ou filhos. Então eu descrevo a situação da mulher em quatro casos distintos: 1) a mulher que contracena com o marido, ela nunca cometeu nenhum crime, mas contracena com ele; 2) a história de mulheres que foram presas por algum envolvimento com o marido; 3) a história de mulheres que foram presas por causa de brigas familiares, ou coisas do tipo envolvendo facadas, mortes... 4) as mulheres que entraram no crime, por incrível que pareça, por opção, por vontade própria mesmo. E o primeiro livro que escrevi, chamado Cobras e Lagartos é a história do PCC. É a história da situação das prisões: o nascimento e fortalecimento do crime organizado, mais precisamente em São Paulo, o PCC e no Rio de Janeiro, o Comando Vermelho.

Quanto tempo de pesquisa você levou pra ter todo esse material pra escrever o livro?
Coincidentemente, os dois livros levaram o mesmo tempo: oito meses pra escrever os dois. Mas no primeiro eram reportagens que eu já tinha feito. Então, não tive muita dificuldade. Muita coisa era inédita, mas muitas coisas eu já tinha publicado no Diário Popular. O segundo, não, o segundo foi reportagem com mulheres mesmo, foi uma maneira que eu arrumei de falar com elas que não foi indo lá.

Como que foi, se não foi “indo lá”? Você pode contar como foi o processo de acompanhar as mulheres sem estar lá? Como era o dia-a-dia delas? Alguma história te emocionou mais?
Algumas presas eu tenho que confessar, eu entrevistei pelo telefone celular mesmo. O telefone celular na cadeia não é novidade. Mas várias histórias me emocionaram. Meninas praticamente, que foram presas e separadas dos filhos. Mães que foram presas por causa do envolvimento com o marido e foram separadas dos filhos. Teve uma que ficou 5 anos sem ver o filho, depois o filho chegou com a avó. Foi uma das cenas mais tristes que eu descrevo no livro. Teve uma outra também que perdeu o filho. Ele morreu recém-nascido e me comoveu muito. Fora outras. Teve uma quase ganhou o filho na cadeia, e nunca foi no ginecologista, fez alguma consulta, nada. E a saúde do sistema penal é zero. O livro tem vários capítulos que eu acho dramático mesmo.

O que você pretende que a gente que tá fora dessa realidade se conscientize? Qual o seu objetivo com esse livro?
Eu acho que os dois livros são uma oportunidade de muita gente que não conhece, inclusive universitários, ter idéia do que é uma prisão, cárcere privado e liberdade. O livro mostra muito bem isso. Mostra a vida dura do sistema carcerário e mostra que isso aí não dá voto, então ninguém se preocupa com isso. A própria sociedade também dá pouca chance pra esse pessoal.
Então o livro mostra muito isso. Mostra o descaso em relação ao sistema prisional que poderia estar atuando e até diminuindo a violência aqui fora. Mas, do jeito que é o sistema prisional, o preso sai mais revoltado. E mais revoltado ele vai judiar de quem? Da gente. Então somos nós que ficamos nesse tiroteio. Se a sociedade desse mais atenção, ela ganharia mais com isso. Ela é quem tem mais a perder com isso. E não está nem aí com o problema prisional. Eu acho que o livro mostra bem isso e a minha intenção é fazer com que as pessoas reflitam sobre esse assunto e conheçam essa realidade.

Onde você estudou e qual sua formação, os lugares que já trabalhou?
Eu me formei em jornalismo na Universidade de Mogi das Cruzes, em 1979, aí depois em 81 eu entrei aqui na PUC, fiz história, me formei. Já trabalhei na Folha Metropolitana de Guarulhos, Diário Popular, Diário de São Paulo, Jornal da Tarde. Já tive um jornal de bairro chamado Espalhafato. Já trabalhei em praticamente todas as emissoras de rádio de SP de jornalismo, menos a rádio Bandeirantes. Embora tenha sido convidado pra trabalhar lá, mas, infelizmente não deu, porque o jornal onde eu estou hoje me fez uma proposta melhor.

Um recado e uma advertência pra nós, estudantes, que ainda vamos chegar ao mercado de trabalho.
O recado é o seguinte: o estudante de jornalismo, o jornalista, tem que amar a profissão. Tem que estar 24 horas ligado, na casa, na rua, na redação. Tem que trabalhar sábado, domingo, feriado. Ele pode ser chamado a qualquer hora pra trabalhar. É igual ou até pior que a situação do médico. Então ele tem que gostar, tem que amar a profissão. E a advertência é fiscalizar o poder público, denunciar tudo o que for possível e apurar coisas com responsabilidade, com ética pra nunca prejudicar ninguém com uma calúnia, uma falsidade ou alguma coisa desse tipo.

Fotos do evento: Cibele Sugano

Fotos do livro: site da Editora Saraiva

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