Economista e educadora popular Roberta Traspadini analisa o cenário de baixa participação feminina no cenário político brasileiro
Recente estudo da Secretaria Especial de Políticas para a Mulher (SEPM) revelou que, mesmo sendo maioria do eleitorado brasileiro, cerca de 51% dos 130 milhões de eleitores, as mulheres têm baixa participação no cenário político brasileiro: apenas 21,33% dos candidatos às próximas eleições são do sexo feminino.
A cota mínima, estipulada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de 30% de mulheres no total de candidaturas para as câmaras municipais não foi cumprida por nenhum dos partidos, de acordo com o levantamento. Já nas candidaturas à prefeitura, somente em Porto Alegre (RS) a cota foi superada (50%), sendo 4 candidatos de cada sexo.
As causas para a baixa participação da mulher no cenário político brasileiro têm raízes culturais e sócio-econômicas. A economista e educadora popular, Roberta Traspadini, em entrevista ao Brasil de Fato, analisa a questão retomando a história do Brasil e a forma como o poder, desde o descobrimento, foi organizado, a partir de cor, gênero e raça. Em sua opinião, a política de cotas é uma forma de se denunciar a desigualdade e anunciar que é necessária a construção de um outro tipo de poder.
A mulher tem alcançado um espaço cada vez maior de visibilidade na sociedade, principalmente no campo do trabalho. Por que na política essa participação ainda é baixa em relação à atuação dos homens?
Roberta Traspadini: Para tratar deste assunto, é importante retomarmos uma questão mais ampla que a política: o poder. Na verdade, na história dos últimos 500 anos, o poder além de cor, tem gênero e raça. O que significa dizer que os homens, brancos, colonizadores europeus, projetaram historicamente sobre as nossas sociedades latinas, não só suas idéias de poder, mas principalmente a forma e o conteúdo de seu exercício.
E o papel que os homens se deram era, por sua vez, o que tiravam de nós, mulheres, como sujeitos políticos. Por isso, a história da mulher na política tem uma relação direta com a história da construção de outro poder necessário e possível ao longo do tempo. Poder ser, poder fazer, poder pensar, poder refazer, para além do que foi projetado pelo colonizador branco. Estamos falando, sim, de uma opressão dentro da classe, que nos remete a rever o tema do gênero e da raça/etnia.
A participação da mulher no mercado de trabalho, conquista de várias lutas próprias, além de um recurso do próprio capital para baratear seus custos, vem acompanhada de outras tantas conquistas. Mas como toda conquista em processo, a relação é densa e tensionada. Trás junto consigo a necessidade de refazermos e desfazermos vários mitos como: o ser mulher a partir de como nos fazemos como mulher e não sobre o que fizeram de nós.
Pode se falar em desigualdade de gênero ou, até mesmo em machismo?
Claro que sim. A desigualdade de gênero está explicita no nosso cotidiano. Nos postos do mercado de trabalho, nos salários que recebemos, na relação social que não avança para acompanhar nossas conquistas, entre outras coisas.
Ou seja, por mais que estejamos nos emancipando em meio à brutal destruição do humano que é característica da sociedade na qual vivemos, não conseguimos avançar, para além da ação, nos prejuízos históricos de uma psicologia social que continua punindo a mulher. Uma punição que ao vigiar, institui o quanto a mulher que rompe com os esquemas tradicionais é menos mulher e mais homem.
E, não bastando isso, ainda institui esquemas para que a própria mulher sinta em si mesma a opressão de ter feito determinadas opções de ser-sentir-agir. A ruptura com essa trincheira da opressão de gênero tem que ser dos dois lados: tanto nas relações entre homens e mulheres, quanto na criação de novos valores para ambos. Pois, não adianta pensarmos na emancipação de um grupo, caso esta não venha acompanhada da emancipação de uma classe a partir da implementação de novos valores superadores dos tradicionais esquemas de submissão e sujeição femininos.
Quando se fala em dupla jornada de trabalho- mulheres que cuidam de seus lares e ainda trabalham fora, fala-se de uma questão cultural e sócio-econômica. O engajamento na política implicaria numa tripla jornada. Como mulheres podem lidar com essa dificuldade, e o que pode ser feito para mudar esse quadro?
Acho que em primeiro lugar deveríamos discutir a mulher como sujeito político. Isto é, como sujeito protagonista da ação. Seja esta ação no âmbito público ou privado. Estou pensando nas nossas várias mulheres lutadoras do povo. Essas não dividem, objetiva-subjetivamente, suas vidas em várias jornadas de trabalho. Essa divisão é um bom recurso pedagógico para delimitar a diferença vivida por homens e mulheres.
Mas em realidade, estas lutadoras do povo vivem suas vidas a partir dos compromissos que estabelecem como sujeitos políticos. E estes compromissos são: cuidar da vida delas como querem para todos; cuidar de seus filhos, cuidar de seus territórios, seus lares, e, principalmente, lutar para que este cuidado seja vivido e projetado a outras mulheres que ainda não são engajadas no âmbito político. Mas volto a insistir, na leitura política, temos que retomar o tema da leitura-prática do poder. Poder ser-fazer-pensar-refazer.
E penso que, quanto mais nos engajamos nas lutas por vidas mais dignas e novos valores, mais iremos ocupando espaços até então minoritários para nós. Aí sim entramos no terreno da política formal, partidária, eleitoral. Mas essa não é a primeira nem a última forma de política. É apenas um conteúdo de uma ação muito maior: a de lutar por um processo emancipatório como mulher inserida no compromisso de classe.
As cotas para as candidaturas e participação nos partidos (de 30%) são uma boa alternativa a abertura de espaço para a mulher na política? Qual modelo se aproximaria do ideal igualitário dentro do cenário político brasileiro?
Todo sistema de cotas é uma política de denunciar e anunciar. Denunciar o quanto ainda se pratica um tipo de poder masculino-branco e anunciar a necessidade e possibilidade da construção de um outro poder. Outro poder em que mulheres e homens, juntos, munidos de novos princípios e valores assumam o que-fazer político como prática de uma ação libertária para todos. Ou seja, o socialismo.
Mas, assim como devemos ir avançando para não pensar em cotas, e isso só ocorrerá quando os princípios e valores forem os socialistas - novo homem, nova mulher, nova moral - devemos avançar também para o estudo, o preparo para o entendimento das questões locais, nacionais, internacionais. Nós mulheres temos o compromisso histórico de nos refazermos como sujeitos políticos, enquanto desfazemos as práticas de opressão e exclusão que vivemos nos diversos âmbitos público-privado. Infelizmente a economia e a ciência política ficaram por muito tempo relegadas ao universo masculino.
Temos que entrar nestes grandes debates, estudar, nos prepararmos para, ao exercer o poder, em todos os âmbitos, termos consciência de que o fazemos em nome de um projeto maior de sociedade, que, como classe trabalhadora, supere os esquemas até então vividos por todos.
A participação feminina nas eleições municipais deste ano, ainda que em baixa proporção (em média 21% de candidaturas em cada região), pode ser considerada uma evolução em relação aos anos anteriores?
Sim e não. Sim em termos de participação efetiva, números e ingresso na política formal, uma vez que, pouco a pouco, mais mulheres se engajam tanto nas lutas do povo, quanto no processo eleitoral formal. E, não, porque ainda temos muito o que avançar no preparo e consciência de classe dos nossos grupos. E isso vale para a classe como um todo, para homens e mulheres.
Mas para nós, dada a herança histórica de não participação, ou de passividade na ação, temos que exercer esse novo fazer, enquanto nos preparamos e rompemos com várias cercas que nos foram impostas ao longo do nosso caminhar.
De acordo com grupos feministas, os partidos não investem na mulher, somente no homem, e como dizem que a política de hoje é para quem tem dinheiro, justificam a ausência da mulher por esta causa. Isto realmente ocorre?
Voltamos ao tema do poder. As feministas têm razão em argumentar isto, uma vez que na imagem da política formal foi sendo estabelecido ao longo do tempo, o homem como ideal de participação social neste cenário. Mas as coisas estão mudando numa velocidade muito rápida. Exemplo disso é o papel da indústria cultural na política através do marketing político: a imagem dos candidatos. A indústria cultural televisiva e de outdoors, tem colocado homens e mulheres como produtos, mercadorias, a serem consumidos, por um lado, e como sujeitos de compra, consumidores, por outro lado.
Com isto está evidenciando que a linha que separava ser-sentir de homem e de mulher, está mais tênue do que nunca. Principalmente se o que está por trás é uma relação de dominação do capital sobre o trabalho em todas as formas. A imagem do êxito e do sucesso no sistema político atual trás consigo o ocultamento tanto da leitura de classe como das posições de gênero e raça. E isto é intencional. Portanto, do que se trata é de instituir uma prática que denuncie ações preconceituosas, ao mesmo tempo em que nos reeduque para uma nova forma-ação social em que nossas vidas estejam centradas numa ação para além do mundo do capital.
A beleza de se ser mulher e de se ser homem tem uma relação direta com a possibilidade de ambos protagonizarem suas vidas rumo a um projeto diferente de sociedade, que supere os preconceitos, os juízos de valores, as práticas brutais de opressão e exploração vividas por muitos sujeitos ao longo da história e, infelizmente, sentidas por mulheres e negros de forma ainda mais brutal. A ordem é a luta pela emancipação. E isso se dá com consciência, organização e luta de classes. Nisto a luta das mulheres é partidária, é classista e eleitoral.
Publicada originalmente na Agência Brasil de Fato.
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