quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Carlos Latuff


O CARTUNISTA E O UNIVERSITÁRIO

Um dos maiores medos de um estudante de jornalismo, é saber como vai se portar na frente do seu primeiro entrevistado. Infinitas indagações giram em sua mente. Será que falará corretamente? Gesticulará demais? Vou importuná-lo com as perguntas? Foi nesse estado de apreensão, e confesso, de medo, que fui atrás da minha primeira entrevista na comemoração de cinco anos do jornal Brasil de Fato. O que não faltava eram possíveis entrevistados, líderes de movimentos sociais, jornalistas conhecidos, intelectuais. Porém um nome não saía da minha mente: Carlos Latuff. Ouvi falar dele pela primeira vez no dia anterior em sala de aula, e sabia que ele estaria no evento. Latuff é cartunista, carioca, ficou conhecido pelos seus desenhos que retratam temas polêmicos, como, a questão da Palestina e a guerra do Iraque, que fazem-nos parar para refletir. O primeiro contato foi efêmero, uma breve apresentação feita por minha professora na entrada do auditório da Pontifica Universidade Católica de São Paulo, o TUCA. Ao longo do evento só o vi durante o discurso que fez no palco parabenizando o jornal: “O Brasil de Fato é o Brasil que de fato queremos”, disse. A comemoração já estava na cerimônia de encerramento, quando percebi que na poltrona da frente, sentado, Latuff observava atenciosamente cada momento. Fiquei trêmulo, não sabia como abordá-lo. Depois disso o que diria? O que perguntaria? Só sabia que aquela era uma oportunidade única, e tinha que agarrá-la. Juntamente com duas amigas, fiz a abordagem: “Carlos tem como falar com você rapidinho?”, perguntei. “Rapidinho!”, repetiu com uma breve pausa, “Rapidinho não dá. Tchau! Vão com Deus. Foi um prazer.” Concluiu apertando minha mão. Somente depois entenderia o que aconteceu naquele momento.
Fiz a primeira pergunta que passou na minha cabeça: “Por que você escolheu a imagem para expressar sua opinião?”
“Ás vezes, escrevo, mas realmente sou melhor desenhando. É um negócio que aprendi dominar desde de garoto. Acredito que a imagem chega mais. Alguma charge, um pictograma, uma placa de trânsito, mesmo que você não saiba ler, vendo aquilo se entende a mensagem. A imagem é mais direta, você consegue contar até a história da humanidade em um desenho”, respondeu.
A partir daí fiquei mais calmo e consegui fazer as perguntas que queria.
“De todos os seus trabalhos, qual você classificaria como o melhor?”
“Eu tenho uma série chamada 'Nós somos todos palestinos', que é uma comparação que faço com o sofrimento dos palestinos com o sofrimento de outros povos na história, como, os negros nos Estados Unidos, o apartheid na África do Sul, nessa série todos os personagens dizem 'Eu sou palestino'. Esse foi o trabalho mais importante que fiz, mas eu posso dizer que todas as séries que fiz sobre a Palestina são importantes. É um tema tabu, ninguém quer tocar, todo mundo tem medo de ser chamado de anti sêmita, de racista, de um monte de rótulos. Quem resolve apoiar a Palestina tem que está preparado para ser esculhambado, espinafrado.”
Após viajar em 1999 a Cisjordânia, Latuff virou simpatizante pela causa dos Palestinos, destinando boa parte do seu trabalho ao tema. Outro assunto que o intriga atualmente, é a questão da dengue em seu estado natal.
“E com relação as fotos sobre a dengue no Rio de Janeiro?”
“Eu gosto muito de fotografia, acho importante a linguagem da imagem e sempre gostei de fazer ensaios fotográficos sobre temas sociais. Nesse caso em particular da dengue, eu achei tanta picaretagem, que decidi fazer fotos mostrando a situação como está, e poucas qualidades, para contextualizar como chegou nesse ponto. Não é simplesmente culpa do mosquito ou do aquecimento global, é culpa da politicagem. Você tem até hoje 'neguinho' discutindo de quem é a responsabilidade do mosquito, se é federal, estadual ou municipal. Enquanto isso, você vê criança descendo a sepultura com dengue, isso é esculhambação, é esculacho.”
“Mas isso nos remete ao histórico da saúde pública do Rio de Janeiro”, afirmo.
“Sim, mas é inaceitável você ver criança morrendo. Fiz esse ensaio em vários lugares, um desses lugares foi a tenda de hidratação, onde o paciente recebe soro na veia . Só tirei quatro fotos, não consegui fazer um ensaio longo, porque fiquei lá desenhando com as crianças, dando uma de Patch Adams. É muito duro você ver crianças de cinco, sete anos com o soro espetado no braço, grogue, mole de dengue. Porque? Por causa da natureza? Não! Por causa da política. Desvio de verba, menos investimento para a saúde, que advém do neoliberalismo, pois neoliberalismo é Estado mínimo, menos dinheiro para o Estado e mais dinheiro para as grandes corporações. O governo federal abriu mão do combate à dengue e passou para o governo municipal. Os carros de combate a dengue estão apodrecendo em estacionamentos, o César Maia não absorveu os mata mosquitos que haviam sido demitidos no governo FHC, que foram readmitidos por força de lei, e o secretário de saúde municipal disse que não existe epidemia. Então, com o que eu fico revoltado e indignado, é exatamente saber que essas vítimas são vítimas da política, não do mosquito. Não sei quem mata mais, se é o mosquito ou o político.”
“As suas charges sobre o Iraque são chocantes, como aquela do soldado em uma cadeira de rodas. O que você tem a dizer sobre esse trabalho?”
“Cara! Os desenhos do Iraque tem a mesma função dos desenhos sobre a Palestina e dos outros desenhos. A proposta é que o blog (http://latuff2.deviantart.com/) seja um banco de imagens subversivas, sobre o Iraque. E ele tem sido! Tem um grupo guerrilheiro que usou desenhos do blog, em revistas e panfletos deles distribuídos lá no Iraque. O guerrilheiro tá se apropriando, é como se eu estivesse dando um AK 47 para eles, munição. Eu tô colaborando através de imagens, e eles sabem a importância disso tanto que eles tem site. É uma coisa impensável de se imaginar um grupo guerrilheiro ter um site, mas eles tem, porque sabem o quanto é importante. E como sei que a imagem também é importante, eu disponibilizo tudo de reprodução livre. E isso chama a atenção de organismos de segurança, Estados Unidos, Departamento de Defesa. O Pentágono visitou o site. É evidente que eles sabem que a mensagem dos desenhos não passa em branco. Então, eles ficam monitorando, não sei pra quê. O que pode acontecer é dizer que eu faço apologia ao terrorismo e fechar o site, daí eu abro outro site.”
Latuff começou sua carreira em uma pequena agência no Rio de Janeiro em 1989, como ilustrador. Publicou sua primeira charge em um boletim do sindicato dos estivadores, no início da década de 1990, e até hoje trabalha para a mídia independente. Tem como princípio nunca dar entrevista para a grande imprensa. Com o advento da internet, iniciou sua militância artística disponibilizando seus desenhos copyleft (livre reprodução) na grande rede.
A cada resposta dada, minha curiosidade aumentava. Qual seria a formação daquele homem que possui opiniões tão sólidas sobre assuntos diversos? Ao ouvir a resposta, confesso que fiquei espantado.
“Cara! Eu tenho segundo grau.”
Então perguntei: “O que uma pessoa que cursou até o segundo grau tem a dizer para os jornalistas que estão começando?” Mais uma vez recebi uma resposta surpreendente.
“Não existe discussão quanto a você ler e aprender, isso é ponto pacifico, todo o mundo tem que fazer. Mas o problema dos jornalistas não está na questão de ler, está na questão da ética, da sensibilidade social. Teve um estudante que me perguntou assim: “Se eu te perguntar o que é melhor para você?” A pergunta não é essa. Eu tenho que pensar no que é melhor para todos. O que for melhor para todos é o melhor pra mim. E o que ó melhor para todos? Você trabalhar na Globo, na Folha, no Estadão, para sacanear os movimentos sociais, para bater no MST, nos Sem Teto? Isso pode ser bom pra mim que ganho prêmios de redação, disso, daquilo. Mas é bom para todos? Essa é a questão. Eu não sei o que vai acontecer com você no futuro. Você tem que idade?”
“Dezoito”, respondi escutando atenciosamente o que falava.
“Ainda tá cheirando a tinta. Pode ser que quando eu te encontrar daqui à dez anos você seja mais um, como pode ser que seja um revolucionário. Não sei! Mas a questão é: a minha parte eu já fiz, estou fazendo. Quando acham que tenho alguma coisa para dizer de relevante, eu paro o que tô fazendo e falo. Converso com as pessoas, divido meu trabalho, o meu pensamento, os meus sentimentos. O que elas farão com isso, eu não sei. Mas eu espero, sinceramente, que essa conversa de alguma maneira possa deixar alguma coisa dentro de você, que no futuro se reverta em ação prática.”
Depois dessa resposta, lembrei do que ele tinha dito no começo, “Rapidinho não dá. Tchau! Vão com Deus. Foi um prazer.” Só aí que entendi que, com Carlos Latuff, não tem como você falar rapidamente.
“As portas já estão fechando.” Observou fitando a saída do auditório.
“Olha Latuff! Muito obrigado.”
“De nada. Foi bom pra você?”
“Com certeza.”
“Então tá bom.”
“Nos encontraremos”, proferi lembrado do que ele tinha dito sobre quando nos reencontrarmos daqui a dez anos.
“Espero. Adorei conhecê-lo.”